terça-feira, 17 de abril de 2012

Contos de um velho sem luz - Cap. IV



















Capítulo IV



Havia um corredor atrás de mim. Agora há apenas um retângulo negro aberto no meio do cenário que me encontro. Isto porque olho para trás com curiosidade e estranhamento. Um corromper da paisagem, como sou cruel por ter criado isto. Será que fui realmente eu que criei esta porta? Onde estou realmente? Tudo me é estranho agora. Minha consciência das coisas começam a acordar somente agora. Meu corpo dói após ter corrido pelo corredor. Estou velho mesmo. Meu corpo! Olho para minhas mãos e não as vejo. Sou como o ar. Existo mas não posso ser visto, nem por mim mesmo. Será que meu corpo é escuridão e na luz não existo? Ao menos sei que meu peso existe, pois piso sobre um trigo dourado, semelhante ao rubro trigo. Seria o mesmo cenário com outro tom? Céu azul, grandes nuvens brancas, calor amarelo, uma pedra perfeita para se sentar, pois ao seu lado há uma macieira frondosa. Na pedra há um homem com braço estendido; coturno, calça, camisa, máscara de gás, e das mãos até os ombros guardado por uma armadura belíssima de placas e desenhos que não consigo explicar, cabelos bagunçados. Tudo nele é impecavelmente negro. Até o reluzir da armadura parece absorver o brilho do sol. Próximo à pedra e ao homem um som se faz presente e sinto um medo quase a me dominar.

- A árvore canta Sr. Joseph: Wolfgang Amadeus Mozart 'Lacrimosa' (Offertorium) from Requiem in D Minor.

A música... Sim! É a mesma que ouço quando vejo o monstro de papel. Porém aqui ela é bela e continua e quando vejo o monstro ela é cruel e distorcida. Seria ele o monstro fora da casca?

- Claro que não Sr. Joseph. Nem faço parte desta história, porém tem algo que desejo dela e acredito que esteja com você o que quero.

Caminho em direção à ele para ficar mais próximo. Somente agora percebo duas coisas: primeiro, o Músico está no dedo indicador do homem que está com o braço erguido e uma linha azul escura sai do nó deste dedo; segundo, ele sabe o que penso. Ele fica em silêncio pensando em algo para me dizer.

- Sim, esta linha quando passa por seu corpo me permite saber o que você pensa e o que já sabe. Tenho uma situação complicada em mãos para resolver. Não posso te explicar tudo Joseph: este é o seu mundo, não meu! Mas posso te guiar mostrando o caminho e perguntas que o ajudarão a pensar e quem sabe reaver os fragmentos que você não mais tem.

O Músico segue a linha que passa entre a minha mão. Sinto o frio passando dentro de minha carne. Sendo invadido fisicamente e mentalmente. Que presença assustadora. O Músico pousa em uma mão que deveria ser visível e compreendo que o meu amigo cantor é guiado até mim por ele. Mas quem é ele?

- Dê-me um nome para ficar mais fácil e facilitar a vida do narrador.

- Fala como se minha vida estivesse contida em um livro.

- Para mim ela um livro aberto que procuro algo neste universo. Porém não seu do começo e nem do fim. Isto sempre me é desconhecido. Apenas ao fluido presente faço parte como tudo e todos.

- Sr. Lupus. – Falo sem pensar muito. Apenas vi que a armadura em um dos ombros tinha forma cabeça de lobo.

- Sua mente é um abismo de criatividade Sr. Joseph.

Estranho... Sinto algo estranho após ele falar isto.

- Mente... – Ergue as mãos incentivando meu pensar.

- Mentira ou cabeça?

Ambos começamos a rir após um momento de silêncio por causa da confusão que fiz com as palavras e iniciamos uma conversa daquelas que se têm às vezes com velhos amigos: descontraídas de tal modo que não levam a nada, não se fixam em assunto especifico, não possuem foco, fluidas a encher o coração de ânimo pro ter uma boa companhia. Até ele interromper, após um longo tempo de conversa.

- Sr. Joseph, não se engane comigo, pois o usarei para conseguir o que desejo.

Sua voz me conforta. Faz-me sentir vivo mesmo com esta intenção anunciada contra mim. Estou vividamente animado para tentar compreender o mundo que vivo. Sensação nostálgica.

- Como me ajudará a compreender o que está acontecendo?

- Te darei algumas perguntas e um fragmento.

- O que é um fragmento?

Ele não me responde. Apenas aponta calmamente para a macieira. No caule dela tem uma pequena peça de quebra cabeça sem cor certa, um borrão de cores. Pego a peça e volto para onde estava. Sento com as pernas cruzadas diante um pai que contará a história de um destemido heróis que de tão corajoso não existe: é mera alegoria.

- Segure a peça na altura da testa. Irei ligar este fragmento em sua mente. Você receberá algumas memórias desta peça e ela será novamente parte de você.

Faço o que Sr. Lupus me pede. Será que somos amigos? Que história eu tenho? Eu não me conheço...

Fragmento I

Uma garota deitada no jardim a contemplar o céu, no centro da imagem.Uma grande bola amarela no canto esquerdo: sol.Abaixo do sol uma flor amarela.

- Pai eu quero uma lua!

- Jo, este sol está parecendo uma bola de pelo amarela. – Falava Layla com os dois braços e o peso do corpo atrás de mim quase a me derrubar da cadeira.

- Lembra o André, não é mamãe? – Diz a pequena Sophia.

- Eu sou o pintor, fiquem quietas. – Digo fazendo movimentos e as expulsando de perto de mim, em vão é claro, pois minhas musas inspiradoras devem ficar ao meu lado. Sempre.

- Lay, diga para Sophia prefiro o sol.

- Mamãe, diga para o papai que eu quero uma lua!

- Layla, diga para si mesma que este cheiro não é de biscoitos queimados. – Ouço Layla correndo para a cozinha e Sophia pulando em cima de mim para me convencer com cócegas a criar a lua que ela deseja. Caímos e tinta voa para cima e cai sobre nós. Layla voltava correndo, ao tentar virar o corredor escorregara e caíra quase batendo de frente com a parede. André passa correndo atrás dela e mia baixinho, pequeno André. Layla pega um biscoito de chocolate do chão e o morde.

- Está com gosto de chocolate quentinho ainda. – Abri um sorriso e fecha os olhos.

- Vamos ajudar a mamãe André.

Sento apressadamente e tateou algo macio.Pequeno André que pegara um biscoito de chocolate maior que sua cabeça. O chão estava úmido de tinta. Quantos quadros eu já fiz mesmo? A oficina está cheia de cheiro de tinta, biscoito de chocolate, imagens e felicidade. Sophia usa uma saia preta, camisa amarela com uma semente preta desenhada nas costas; cabelos castanhos, curtos e ondulados; segurando um biscoito de chocolate com as duas mãos e comendo junto com Layla.

André me olha fixamente.

- Te encontrei. – Diz repentinamente. Levanto em um pulo. Layla e Sophia não o perceberam falar. – Desta vez está sendo difícil te encontrar Joseph. – A voz soa extremamente potente para um pequeno gato. A risada é maliciosa e me incomoda. – Diga-me: quem é seu novo amigo? Ele é um completo estranho, espero que não esteja confiando nele. O que ele quer com você? – Ele me rodeia como um poderoso predador. – Eu temo por Layla e Sophia. – Com medo por elas? Não se preocupe. Isto é apenas uma memória. Como você conseguiu este fragmento Joseph? – Fico em silêncio, sem saber se aquilo é real ou não. – RESPONDA-ME! – O monstro se enfurece comigo. – Ah. Sabe quem sou agora? Não você não sabe ainda. Na verdade você não sabe nada sobre mim. Hurrr hurrr – Rosna. – Há há há! – Ri da minha fraqueza de compreensão. – Eu quero o seu bem Joseph. E o seu bem é a morte. Que tal eu tirar definitivamente de sua memória estas duas? – Ele se volta para elas.O pequeno corpo começa a se contorcer e duas mãos começam a abrir o gato ao meio.

- Não! – Grito e corro em direção de minhas queridas memórias. Porém uma grande mão de tinta negra sai do gato e me acerta violentamente. Meu corpo é arremessado contra a parede. A sensação de um carro me atropelando. Caio e estou na rua. Vejo o corpo de minhas queridas ao chão como eu. Porém estou consciente. E um gato, ao longe mia maleficamente. A rua esta chia de sons desconexos e minha visão se vai lentamente enquanto o gato com uma enorme mão de tinta se aproxima delas. Não posso fazer nada?

- Não se intrometa em meu alimento, velho. Você não é nada além de um pedaço do que um dia já foi. Uma peça. Uma memória a andarilhar.

Uma linha azul escura balança no ar. Vejo Sr. Lupus correndo. Ele pula e com uma braço erguido no ar, a mão em forma de garras. Vai de encontro, inevitável, ao gato, o monstro, rugindo como um verdadeiro lobo defendendo a alcateia.

Não me resta mais nada além de escuridão, novamente.

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