Capítulo II
Joseph
estava encostado na parede do lado direito do quarto onde o músico cantava além
dela. Teria algum outro quarto do outro lado daquela parede? Como era estranho
não saber o que a escuridão esconde e o que nela realmente há. Na escuridão não
há espaço, não há contornos, não há limites reais. Ela esconde a tudo e nos
chama em desafiar: Venha e me conquiste, descubra-me. Toque o chão desconhecido
com cada passo e senta que a qualquer momento não terá mais onde pisar. Medo do
desconhecido. Erga as mãos para frente e tente prever o obstáculo para não se
machucar. Arregale os olhos e tente desesperadamente ver algo: seja tolo. Todos
sons serão amplificados, dizem que é o medo, mas na verdade não sabem o poder
que a ausência da luz tem ou não admitem. É uma outra dimensão de sentidos que
nasce dentro de mim.
- Não
existe parede Joseph.
O corpo
de Joseph tomba para trás balançando os braços e pernas inutilmente.
- Tenho
que te ensinar que a sua mente o limita? Se não vê não existe. Se toca existe. Se
você se esquece contraria as dimensões de seus sentidos?
Joseph
caíra do outro lado da parede. E haviam muitos objetos empoeirados. O cheiro de
velho era denso. Madeira, metal, som, poeira, papel, Joseph: tudo misturado.
Rastejou para dentro da sala. E por mais estranho que fosse havia uma certa
comodidade visual. Como uma luz quase no fim de sua vida. Alguns objetos faziam-se
presente na visão de Joseph em contornos escuros, mas realmente era possível
ver alguma ou outra coisa ali. Então olhou para trás e viu que havia uma parede
translúcida pela qual passara. E era possível ver do outro lado o seu quarto.
Tão familiar no escuro, porém enigmático quando se é possível ver alguns
contornos.
A cama.
As botas. Os farelos do pão. O penico. A jarra de cerâmica. Como conhecia
aquilo tudo sem ver e ao ver lhe era estranho? Demorava a dar nomes às coisas.
Será que veria André?
Terceira
Refeição
A porta
abriu e um som explodiu quando ela bateu na parede. Uma mulher de longos e
fartos cabelos lisos entrou pela porta. Seu torso era forte e imponente. Uma
bela mulher, mesmo sendo vista como sombra. Pouca luz ousava entrar pela porta.
As pernas da mulher eram estranhas, pareciam patas de um animal.
- Parte
mulher parte vaca. – André Complementou o pensamento.
-
Flávia. – Disse Joseph pensativo.
Flávia
então urrou contra as paredes que tremeram e jogou o penico que se estilhaçou
no chão.
-
Maldito! Novamente escapou?
Passou
pela porta e esta se fechou sozinha. Um barulho de molho de chaves tilintou. Estava
de olhos bem abertos e nem ao menos piscara contudo em um instante estava
deitado na sua cama, assustado com o que vira. Seus olhos pesavam...
Antenas
de transmissão de energia zumbiam como abelhas gigantes ferroando o ar com suas
formas metálicas. O céu estava em crepúsculo. Belo cair do dia e sublime erguer
da noite. Uma espada enferrujada caída ou jogada na terra, não que houvesse
algum lugar a qual pertencesse, mas é importante dizer que assim ele estava e
permanecia: caída, jogada, não manipulada, uma voz sem dono, corpo sem tato,
paisagem de um cego.
Aquela
estranha música de vitrola ecoava sonoramente irritante de tão maldosa que era
sua intenção emanando do nada e preenchendo tudo. Secos e misteriosos: passos
que avançavam um após outro. Joseph olhava o objeto e o coração com aquele temor.
Levantando um pouco a cabeça via uma criatura de papel retorcido, uma obra
viva, imitando um humano. O monstro caminhava para a espada e nada o impedia,
nada poderia o impedir, nada o impedirá, nada o impediu. Tudo conspirava para
aquele momento. O que faria um inanimado para se tornar animado e o porquê de
querer tal vã mortalidade? Se pensamentos, ideias ou ilusões caminhassem entre
nós teríamos deuses tão puros. Tão puros que seriam corruptos.
As
antenas rangiam e zumbiam. Alegres em sua plenitude...
Primeira
Refeição
O som da
porta de madeira abrindo interrompeu a visão de Joseph. Flávia trazia a
primeira refeição do dia sendo jogada com rancor para o velho que deitado
estava no colchão empoeirado. A comida batera em sua face e mesmo com os olhos
concentrados no nada teve a certeza de que o impacto recebido pertencia a um
pedaço de carne crua e o outro som líquido que se fizera presente próximo a
porta era água, provavelmente.
Flávia
aguardou algum olhar de Joseph, que petrificado de medo estava e continuou a
olhar o nada com grande tensão.
- Não se
lembra de nada. Velho estúpido. – Deixou o ar lhe escapar pelas narinas,
furiosamente.
A porta
se fechou.
Como uma
criança que teme aguardou um momento na cama, na verdade o medo o afixara na nela.
Começou a devorar a carne crua e distrair seus pensamentos. Após muito tempo
observando fixamente o teto lembra-se do músico. Onde estava o músico? O
silêncio impregnado em sua pele o irritava agora. Flávia... A sala ao lado.
Quantas coisas não compreendia.Será que já tinha escapado do seu refúgio? Se
sim: porque não lembrava?
- Quanto
tempo ficará deitado aí velho? Esta deitado há um bom tempo. Estou entediado.E
estas botas que você não tira há dias. Na próxima certamente terá de tirar para
que as calças saiam de seu corpo. Para que você veste isto mesmo? Ninguém te
olha aqui além de mim. Para que pudor nesta escuridão? Pensando bem fique com
esta calça, não te quero nu perto de mim. – Gargalhou André até perder o
fôlego.
Estranha
sensação germinava.
A porta
de madeira é pesada demais e está trancada. Nem uma fresta de luz passa por
ela. Porque enfatizar isto no nada?
- Boa
pergunta. – indagou André.
Joseph
se levantou rapidamente e caminhou com toda determinação contra a parede a fim
de transpô-la. Porém foi contra a parede que revidou com solidez notável. Gemia
o velho Joseph de dor e sua voz sumia em agudas pontadas no nariz.
- Joseph...
Quanto tempo você irá durar agora? – Perguntou André.
Algo se
movia sem seu conhecimento. Teve vontade de perguntar em gritos o que estava
acontecendo. A dor falou mais alto e a ideia sumiu. Encostou então na parede
sólida.
- Seria
estranha se fosse líquida. Não que não possa o ser, mas é quase um pleonasmo.
Compreende!?
Calou-se
André.
– Vive
me oprimindo. – Queixou-se em vão.
Algo se
mexeu no nariz de Joseph e eu corpo passou pela parede. Neste ponto todas
duvidas se divergiram e convergiram o fazendo ter alucinações do que se
lembrava antes da primeira refeição deste dia. O músico se alegrava com os
velhos objetos e cantava diferente.
Estranha
sensação brotava.
O som dá
contorno a emoções. O silêncio se une à pele, superfícies e imaginação. Estava a
tatear os objetos espalhados, confrontando a rígida realidade que construía no fluido
pensar que é maleável a cada contorno novo que se descobre. O tempo começava a
ter um sentido para Joseph. Aquela tinha sido a primeira refeição. A segunda
viria em breve. Era certo que Flávia não o veria ali, porém ficaria furiosa e
poderia lhe dar uma futura surra.
Quadro:
Quatro pontas, texturas sulcadas na madeira em forma de videiras. Um desenho
feito para dentro e não para fora. Estava invertido para Joseph. O centro não
continha ou mantinha nada além do espaço além dele. Mas era um quadro com toda
certeza. Textura áspera de leves atritos que ameaçavam farpear os dedos. Cheiro
de... Madeira seca corroída pelo tempo. Peso estranho para quatro pedaços de
madeira unidos.
Próximo...
Papel:
Quatro pontas também. Fino e plano? Apenas fino. O amassado quebrara o plano.
Havia uma imagem que não era de fácil visualização, mesmo com a misteriosa
visão que era possível naquele local. Apenas se via uma semente amarela como a
da camisa daquela garota que segurava o balão. Talvez fosse ela ou talvez a
camisa estivesse no varal a secar. Porque pensar em um varal? E porque esta
lembrança lhe trazia a sensação de calor? Que calor era aquele? A lembrança
incomodava os olhos. Podia uma lembrança cegar? Como a luz pode cegar? Que
cruel.
- Não é
a luz que cega Joseph. Você que não está apto a tê-la. Sinto cheiro de vaca.
Joseph
correu de volta para a sua cama compreendendo a mensagem de André que fizera
algo de útil ao invés de falar besteiras.
- Alguém
ai me subestima. – Disse André para alguém que o subestima com razão.
Estranha
sensação crescia.
Segunda
refeição.
Joseph
retornou para a sala secreta como a chamava agora. Adorava dar nomes. Até André
tinha este nome porque Joseph o decidira em algum momento. Iniciou sua jornada
por novas descobertas materiais.
Objeto estranho:
Metálico e frio. Era maior que a mão de Joseph. O metal possuía duas hastes a
partir da base de metal e borracha. Cada haste possuía dentes serrilhados e de
tamanhos diferentes, sendo que uma tinha dentes maiores que a outra: uma
mandíbula. Na base cabia os dedos de uma mão fechando para segurar o objeto.
Seria uma espada?
– Quase Joseph. – intrometeu-se André.
Com a
mão esquerda segurou o objeto do modo que sugeria ser segurada com os dentes
grandes voltados para baixo, parecia um soco inglês. Um brilho fraquíssimo, mas
real, azul escuro se fez presente no metal e viu-se a forma clara, mesmo que
muito estranha para tal objeto: uma chave com o formato de cabeça de gato. Não
houve dúvidas para que servia e onde se encaixaria.
- Sinto
cheiro de vaca querido Joseph. Por mais que eu goste de te ver levando uma
surra, você está me divertindo. Então volta para sua cama e deite lá seu verme.
Joseph
voltara com a chave e deitou sobre ela.
Estranha
sensação criara o fruto da dúvida e Joseph o comeu.
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