quarta-feira, 4 de abril de 2012

Contos de um velho sem luz - Cap. II



















Capítulo II



Joseph estava encostado na parede do lado direito do quarto onde o músico cantava além dela. Teria algum outro quarto do outro lado daquela parede? Como era estranho não saber o que a escuridão esconde e o que nela realmente há. Na escuridão não há espaço, não há contornos, não há limites reais. Ela esconde a tudo e nos chama em desafiar: Venha e me conquiste, descubra-me. Toque o chão desconhecido com cada passo e senta que a qualquer momento não terá mais onde pisar. Medo do desconhecido. Erga as mãos para frente e tente prever o obstáculo para não se machucar. Arregale os olhos e tente desesperadamente ver algo: seja tolo. Todos sons serão amplificados, dizem que é o medo, mas na verdade não sabem o poder que a ausência da luz tem ou não admitem. É uma outra dimensão de sentidos que nasce dentro de mim.

- Não existe parede Joseph.

O corpo de Joseph tomba para trás balançando os braços e pernas inutilmente.

- Tenho que te ensinar que a sua mente o limita? Se não vê não existe. Se toca existe. Se você se esquece contraria as dimensões de seus sentidos?

Joseph caíra do outro lado da parede. E haviam muitos objetos empoeirados. O cheiro de velho era denso. Madeira, metal, som, poeira, papel, Joseph: tudo misturado. Rastejou para dentro da sala. E por mais estranho que fosse havia uma certa comodidade visual. Como uma luz quase no fim de sua vida. Alguns objetos faziam-se presente na visão de Joseph em contornos escuros, mas realmente era possível ver alguma ou outra coisa ali. Então olhou para trás e viu que havia uma parede translúcida pela qual passara. E era possível ver do outro lado o seu quarto. Tão familiar no escuro, porém enigmático quando se é possível ver alguns contornos.

A cama. As botas. Os farelos do pão. O penico. A jarra de cerâmica. Como conhecia aquilo tudo sem ver e ao ver lhe era estranho? Demorava a dar nomes às coisas. Será que veria André?

Terceira Refeição

A porta abriu e um som explodiu quando ela bateu na parede. Uma mulher de longos e fartos cabelos lisos entrou pela porta. Seu torso era forte e imponente. Uma bela mulher, mesmo sendo vista como sombra. Pouca luz ousava entrar pela porta. As pernas da mulher eram estranhas, pareciam patas de um animal.

- Parte mulher parte vaca. – André Complementou o pensamento.

- Flávia. – Disse Joseph pensativo.

Flávia então urrou contra as paredes que tremeram e jogou o penico que se estilhaçou no chão.

- Maldito! Novamente escapou?

Passou pela porta e esta se fechou sozinha. Um barulho de molho de chaves tilintou. Estava de olhos bem abertos e nem ao menos piscara contudo em um instante estava deitado na sua cama, assustado com o que vira. Seus olhos pesavam...


Antenas de transmissão de energia zumbiam como abelhas gigantes ferroando o ar com suas formas metálicas. O céu estava em crepúsculo. Belo cair do dia e sublime erguer da noite. Uma espada enferrujada caída ou jogada na terra, não que houvesse algum lugar a qual pertencesse, mas é importante dizer que assim ele estava e permanecia: caída, jogada, não manipulada, uma voz sem dono, corpo sem tato, paisagem de um cego.

Aquela estranha música de vitrola ecoava sonoramente irritante de tão maldosa que era sua intenção emanando do nada e preenchendo tudo. Secos e misteriosos: passos que avançavam um após outro. Joseph olhava o objeto e o coração com aquele temor. Levantando um pouco a cabeça via uma criatura de papel retorcido, uma obra viva, imitando um humano. O monstro caminhava para a espada e nada o impedia, nada poderia o impedir, nada o impedirá, nada o impediu. Tudo conspirava para aquele momento. O que faria um inanimado para se tornar animado e o porquê de querer tal vã mortalidade? Se pensamentos, ideias ou ilusões caminhassem entre nós teríamos deuses tão puros. Tão puros que seriam corruptos.
As antenas rangiam e zumbiam. Alegres em sua plenitude...


Primeira Refeição

O som da porta de madeira abrindo interrompeu a visão de Joseph. Flávia trazia a primeira refeição do dia sendo jogada com rancor para o velho que deitado estava no colchão empoeirado. A comida batera em sua face e mesmo com os olhos concentrados no nada teve a certeza de que o impacto recebido pertencia a um pedaço de carne crua e o outro som líquido que se fizera presente próximo a porta era água, provavelmente.

Flávia aguardou algum olhar de Joseph, que petrificado de medo estava e continuou a olhar o nada com grande tensão.

- Não se lembra de nada. Velho estúpido. – Deixou o ar lhe escapar pelas narinas, furiosamente.

A porta se fechou.

Como uma criança que teme aguardou um momento na cama, na verdade o medo o afixara na nela. Começou a devorar a carne crua e distrair seus pensamentos. Após muito tempo observando fixamente o teto lembra-se do músico. Onde estava o músico? O silêncio impregnado em sua pele o irritava agora. Flávia... A sala ao lado. Quantas coisas não compreendia.Será que já tinha escapado do seu refúgio? Se sim: porque não lembrava?

- Quanto tempo ficará deitado aí velho? Esta deitado há um bom tempo. Estou entediado.E estas botas que você não tira há dias. Na próxima certamente terá de tirar para que as calças saiam de seu corpo. Para que você veste isto mesmo? Ninguém te olha aqui além de mim. Para que pudor nesta escuridão? Pensando bem fique com esta calça, não te quero nu perto de mim. – Gargalhou André até perder o fôlego.

Estranha sensação germinava.

A porta de madeira é pesada demais e está trancada. Nem uma fresta de luz passa por ela. Porque enfatizar isto no nada?
- Boa pergunta. – indagou André.

Joseph se levantou rapidamente e caminhou com toda determinação contra a parede a fim de transpô-la. Porém foi contra a parede que revidou com solidez notável. Gemia o velho Joseph de dor e sua voz sumia em agudas pontadas no nariz.

- Joseph... Quanto tempo você irá durar agora? – Perguntou André.

Algo se movia sem seu conhecimento. Teve vontade de perguntar em gritos o que estava acontecendo. A dor falou mais alto e a ideia sumiu. Encostou então na parede sólida.

- Seria estranha se fosse líquida. Não que não possa o ser, mas é quase um pleonasmo. Compreende!?

Calou-se André.

– Vive me oprimindo. – Queixou-se em vão.

Algo se mexeu no nariz de Joseph e eu corpo passou pela parede. Neste ponto todas duvidas se divergiram e convergiram o fazendo ter alucinações do que se lembrava antes da primeira refeição deste dia. O músico se alegrava com os velhos objetos e cantava diferente.

Estranha sensação brotava.

O som dá contorno a emoções. O silêncio se une à pele, superfícies e imaginação. Estava a tatear os objetos espalhados, confrontando a rígida realidade que construía no fluido pensar que é maleável a cada contorno novo que se descobre. O tempo começava a ter um sentido para Joseph. Aquela tinha sido a primeira refeição. A segunda viria em breve. Era certo que Flávia não o veria ali, porém ficaria furiosa e poderia lhe dar uma futura surra.

Quadro: Quatro pontas, texturas sulcadas na madeira em forma de videiras. Um desenho feito para dentro e não para fora. Estava invertido para Joseph. O centro não continha ou mantinha nada além do espaço além dele. Mas era um quadro com toda certeza. Textura áspera de leves atritos que ameaçavam farpear os dedos. Cheiro de... Madeira seca corroída pelo tempo. Peso estranho para quatro pedaços de madeira unidos.

Próximo...

Papel: Quatro pontas também. Fino e plano? Apenas fino. O amassado quebrara o plano. Havia uma imagem que não era de fácil visualização, mesmo com a misteriosa visão que era possível naquele local. Apenas se via uma semente amarela como a da camisa daquela garota que segurava o balão. Talvez fosse ela ou talvez a camisa estivesse no varal a secar. Porque pensar em um varal? E porque esta lembrança lhe trazia a sensação de calor? Que calor era aquele? A lembrança incomodava os olhos. Podia uma lembrança cegar? Como a luz pode cegar? Que cruel.

- Não é a luz que cega Joseph. Você que não está apto a tê-la. Sinto cheiro de vaca.

Joseph correu de volta para a sua cama compreendendo a mensagem de André que fizera algo de útil ao invés de falar besteiras.

- Alguém ai me subestima. – Disse André para alguém que o subestima com razão.

Estranha sensação crescia.

Segunda refeição.

Joseph retornou para a sala secreta como a chamava agora. Adorava dar nomes. Até André tinha este nome porque Joseph o decidira em algum momento. Iniciou sua jornada por novas descobertas materiais.

Objeto estranho: Metálico e frio. Era maior que a mão de Joseph. O metal possuía duas hastes a partir da base de metal e borracha. Cada haste possuía dentes serrilhados e de tamanhos diferentes, sendo que uma tinha dentes maiores que a outra: uma mandíbula. Na base cabia os dedos de uma mão fechando para segurar o objeto. Seria uma espada?

 – Quase Joseph. – intrometeu-se André.

Com a mão esquerda segurou o objeto do modo que sugeria ser segurada com os dentes grandes voltados para baixo, parecia um soco inglês. Um brilho fraquíssimo, mas real, azul escuro se fez presente no metal e viu-se a forma clara, mesmo que muito estranha para tal objeto: uma chave com o formato de cabeça de gato. Não houve dúvidas para que servia e onde se encaixaria.
- Sinto cheiro de vaca querido Joseph. Por mais que eu goste de te ver levando uma surra, você está me divertindo. Então volta para sua cama e deite lá seu verme.

Joseph voltara com a chave e deitou sobre ela.

Estranha sensação criara o fruto da dúvida e Joseph o comeu.

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