Capítulo IV
Havia um
corredor atrás de mim. Agora há apenas um retângulo negro aberto no meio do
cenário que me encontro. Isto porque olho para trás com curiosidade e
estranhamento. Um corromper da paisagem, como sou cruel por ter criado isto.
Será que fui realmente eu que criei esta porta? Onde estou realmente? Tudo me é
estranho agora. Minha consciência das coisas começam a acordar somente agora. Meu
corpo dói após ter corrido pelo corredor. Estou velho mesmo. Meu corpo! Olho
para minhas mãos e não as vejo. Sou como o ar. Existo mas não posso ser visto,
nem por mim mesmo. Será que meu corpo é escuridão e na luz não existo? Ao menos
sei que meu peso existe, pois piso sobre um trigo dourado, semelhante ao rubro
trigo. Seria o mesmo cenário com outro tom? Céu azul, grandes nuvens brancas, calor
amarelo, uma pedra perfeita para se sentar, pois ao seu lado há uma macieira frondosa.
Na pedra há um homem com braço estendido; coturno, calça, camisa, máscara de
gás, e das mãos até os ombros guardado por uma armadura belíssima de placas e
desenhos que não consigo explicar, cabelos bagunçados. Tudo nele é impecavelmente
negro. Até o reluzir da armadura parece absorver o brilho do sol. Próximo à
pedra e ao homem um som se faz presente e sinto um medo quase a me dominar.
- A árvore
canta Sr. Joseph: Wolfgang Amadeus Mozart 'Lacrimosa' (Offertorium) from
Requiem in D Minor.
A
música... Sim! É a mesma que ouço quando vejo o monstro de papel. Porém aqui
ela é bela e continua e quando vejo o monstro ela é cruel e distorcida. Seria
ele o monstro fora da casca?
- Claro
que não Sr. Joseph. Nem faço parte desta história, porém tem algo que desejo
dela e acredito que esteja com você o que quero.
Caminho
em direção à ele para ficar mais próximo. Somente agora percebo duas coisas:
primeiro, o Músico está no dedo indicador do homem que está com o braço erguido
e uma linha azul escura sai do nó deste dedo; segundo, ele sabe o que penso.
Ele fica em silêncio pensando em algo para me dizer.
- Sim,
esta linha quando passa por seu corpo me permite saber o que você pensa e o que
já sabe. Tenho uma situação complicada em mãos para resolver. Não posso te
explicar tudo Joseph: este é o seu mundo, não meu! Mas posso te guiar mostrando
o caminho e perguntas que o ajudarão a pensar e quem sabe reaver os fragmentos
que você não mais tem.
O Músico
segue a linha que passa entre a minha mão. Sinto o frio passando dentro de
minha carne. Sendo invadido fisicamente e mentalmente. Que presença
assustadora. O Músico pousa em uma mão que deveria ser visível e compreendo que
o meu amigo cantor é guiado até mim por ele. Mas quem é ele?
- Dê-me
um nome para ficar mais fácil e facilitar a vida do narrador.
- Fala
como se minha vida estivesse contida em um livro.
- Para
mim ela um livro aberto que procuro algo neste universo. Porém não seu do
começo e nem do fim. Isto sempre me é desconhecido. Apenas ao fluido presente
faço parte como tudo e todos.
- Sr.
Lupus. – Falo sem pensar muito. Apenas vi que a armadura em um dos ombros tinha
forma cabeça de lobo.
- Sua
mente é um abismo de criatividade Sr. Joseph.
Estranho...
Sinto algo estranho após ele falar isto.
- Mente...
– Ergue as mãos incentivando meu pensar.
-
Mentira ou cabeça?
Ambos
começamos a rir após um momento de silêncio por causa da confusão que fiz com
as palavras e iniciamos uma conversa daquelas que se têm às vezes com velhos
amigos: descontraídas de tal modo que não levam a nada, não se fixam em assunto
especifico, não possuem foco, fluidas a encher o coração de ânimo pro ter uma
boa companhia. Até ele interromper, após um longo tempo de conversa.
- Sr.
Joseph, não se engane comigo, pois o usarei para conseguir o que desejo.
Sua voz
me conforta. Faz-me sentir vivo mesmo com esta intenção anunciada contra mim.
Estou vividamente animado para tentar compreender o mundo que vivo. Sensação
nostálgica.
- Como
me ajudará a compreender o que está acontecendo?
- Te
darei algumas perguntas e um fragmento.
- O que
é um fragmento?
Ele não
me responde. Apenas aponta calmamente para a macieira. No caule dela tem uma
pequena peça de quebra cabeça sem cor certa, um borrão de cores. Pego a peça e
volto para onde estava. Sento com as pernas cruzadas diante um pai que contará
a história de um destemido heróis que de tão corajoso não existe: é mera alegoria.
- Segure
a peça na altura da testa. Irei ligar este fragmento em sua mente. Você
receberá algumas memórias desta peça e ela será novamente parte de você.
Faço o
que Sr. Lupus me pede. Será que somos amigos? Que história eu tenho? Eu não me
conheço...
Fragmento I
Uma
garota deitada no jardim a contemplar o céu, no centro da imagem.Uma grande bola amarela no canto esquerdo: sol.Abaixo do sol uma flor amarela.
- Pai eu
quero uma lua!
- Jo,
este sol está parecendo uma bola de pelo amarela. – Falava Layla com os dois
braços e o peso do corpo atrás de mim quase a me derrubar da cadeira.
- Lembra
o André, não é mamãe? – Diz a pequena Sophia.
- Eu sou
o pintor, fiquem quietas. – Digo fazendo movimentos e as expulsando de perto de
mim, em vão é claro, pois minhas musas inspiradoras devem ficar ao meu lado.
Sempre.
- Lay,
diga para Sophia prefiro o sol.
- Mamãe,
diga para o papai que eu quero uma lua!
- Layla,
diga para si mesma que este cheiro não é de biscoitos queimados. – Ouço Layla
correndo para a cozinha e Sophia pulando em cima de mim para me convencer com
cócegas a criar a lua que ela deseja. Caímos e tinta voa para cima e cai sobre
nós. Layla voltava correndo, ao tentar virar o corredor escorregara e caíra
quase batendo de frente com a parede. André passa correndo atrás dela e mia
baixinho, pequeno André. Layla pega um biscoito de chocolate do chão e o morde.
- Está
com gosto de chocolate quentinho ainda. – Abri um sorriso e fecha os olhos.
- Vamos
ajudar a mamãe André.
Sento
apressadamente e tateou algo macio.Pequeno André que pegara um biscoito de
chocolate maior que sua cabeça. O chão estava úmido de tinta. Quantos quadros
eu já fiz mesmo? A oficina está cheia de cheiro de tinta, biscoito de chocolate,
imagens e felicidade. Sophia usa uma saia preta, camisa amarela com uma semente
preta desenhada nas costas; cabelos castanhos, curtos e ondulados; segurando um
biscoito de chocolate com as duas mãos e comendo junto com Layla.
André me
olha fixamente.
- Te
encontrei. – Diz repentinamente. Levanto em um pulo. Layla e Sophia não o perceberam
falar. – Desta vez está sendo difícil te encontrar Joseph. – A voz soa extremamente
potente para um pequeno gato. A risada é maliciosa e me incomoda. – Diga-me:
quem é seu novo amigo? Ele é um completo estranho, espero que não esteja
confiando nele. O que ele quer com você? – Ele me rodeia como um poderoso
predador. – Eu temo por Layla e Sophia. – Com medo por elas? Não se preocupe.
Isto é apenas uma memória. Como você conseguiu este fragmento Joseph? – Fico em
silêncio, sem saber se aquilo é real ou não. – RESPONDA-ME! – O monstro se enfurece
comigo. – Ah. Sabe quem sou agora? Não você não sabe ainda. Na verdade você não
sabe nada sobre mim. Hurrr hurrr – Rosna. – Há há há! – Ri da minha fraqueza de
compreensão. – Eu quero o seu bem Joseph. E o seu bem é a morte. Que tal eu
tirar definitivamente de sua memória estas duas? – Ele se volta para elas.O
pequeno corpo começa a se contorcer e duas mãos começam a abrir o gato ao meio.
- Não! –
Grito e corro em direção de minhas queridas memórias. Porém uma grande mão de
tinta negra sai do gato e me acerta violentamente. Meu corpo é arremessado
contra a parede. A sensação de um carro me atropelando. Caio e estou na rua.
Vejo o corpo de minhas queridas ao chão como eu. Porém estou consciente. E um
gato, ao longe mia maleficamente. A rua esta chia de sons desconexos e minha visão
se vai lentamente enquanto o gato com uma enorme mão de tinta se aproxima delas.
Não posso fazer nada?
- Não se
intrometa em meu alimento, velho. Você não é nada além de um pedaço do que um dia já foi. Uma peça. Uma memória a andarilhar.
Uma
linha azul escura balança no ar. Vejo Sr. Lupus correndo. Ele pula e com uma braço
erguido no ar, a mão em forma de garras. Vai de encontro, inevitável, ao gato,
o monstro, rugindo como um verdadeiro lobo defendendo a alcateia.
Não me
resta mais nada além de escuridão, novamente.