
Capítulo V
Fragmento II
Estou esperando um trem diante do trilho. O som dele se aproximando me faz ansioso, mas tenho de ter calma, pois lançarei o palhaço pintado de Joseph no momento certo.
As
memórias mais antigas que possuo vivas em minha mente são um pai alcoólatra, e
uma mãe prostituta. Para muitos isto seria ruim, mas para mim era divertido.
Uma família corrompida pelos mais baixos níveis da sociedade jogada à pobreza e
sem escolha de ascensão (mentira, todos podemos subir). Meu pai mesmo alcoolizado
sempre me foi um excelente companheiro de guerra, um irmão. E minha mãe mesmo
com todas dificuldades de largar seus vícios que meu pai não alimentava de modo
algum como as drogas e outras porcarias humanas era uma boa pessoa.
O
problemas das drogas é certamente quem a usa, dizia meu pai. Sempre bebi e
nunca deixei a bebida me dominar ao contrário da sua mãe que é dominada por
tudo que deseja e pensa ser necessário para ela.
Nunca
saberei se ele realmente era meu pai, creio que não fosse o biológico é claro. Mas ele
o era sem sombra de dúvidas o meu companheiro de guerra. As mãos furiosas de minha
mãe nunca me alcançaram enquanto meu companheiro cobria minha retaguarda para que eu
escapasse, logo ele corria atrás de mim dizendo que estávamos sendo perseguidos
pelo inimigo. Era sempre assim quando eu aprontava, quando eu queria fugir com
meu companheiro.
Porém a
vida me ensinou desde cedo que estamos em um trilho de trem suspenso no nada. O
trem virá e matará mais do que nosso corpo.
Um dia
ele não veio atrás de mim no lugar dele havia uma mulher que eu não mais a
chamo de mãe com uma faca, um líquido vermelho e uma questão: Onde está meu
dinheiro? Após isto: luzes vermelhas e azuis, barulho de grades, a irmã de meu companheiro
a me levar para a casa dela.
Não
lembro o nome de meu companheiro, mas da desgraçada eu me lembro: vaca maldita!
Então um
monte de dias sem importância: fingir que estuda, fingir que se tem amigos,
fingir que se tem uma família feliz e irmãos agradáveis, fingir que namora,
fingir que trabalha, fingir que vive.
FINGIR!
Gostava
quando meu companheiro de batalha falava: Se quiser fuja, mas saiba que estarei
aqui até você entender que se acovardar não é a solução.
Eu
sempre soube o valor disto.
Quando
tudo mudou mesmo? Quando o fingir não era mais interessante? Há sim! Layla.
Sempre sorrio quando encontro em minha memória aqueles seios dentro da camisa preta
com girassóis amarelos.
Estava
em um museu a observar o jardim do mesmo. Com o interesse de um gigante sobre
um mundo maior que ele: a beleza da simplicidade. Um caderno em mãos e uma
estranha curiosidade e desejo de reproduzir aquilo. Sempre fui um bom
observador de pessoas, gestos, objetos. E ao pegar o caderno e o lápis pensei:
Que diabos estou fazendo?
- Não
sei. – Respondeu uma bela garota de sorriso fino e largo que eram
contraditórios aos seus lábios que em forma normal, bela também, eram volumosos
e sedutores.
- Pensei
alto?
- Sim. Vai
desenhar a rosa?
- Não
sei desenhar... Quero dizer... Nunca tentei.
- Tente
então. Se precisar de alguma dica eu te passo. Sou estagiária neste museu e
estudo artes, talvez eu possa te ajudar em algo básico.
Comecei
a rabiscar o papel e o nada preenchido por formas se tornou uma rosa cortada por
linhas horizontais.
- Não
sabe desenhar?
- É a
primeira vez que faço isto. – Imediatamente virei a página e tentei desenhar o
rosto de meu companheiro.
- O que
desenhará agora?
- Tentarei
desenhar meu companheiro de guerra.
- Quem?
- Meu
pai.
Ao fazer
os traços do rosto percebi que eu não seria capaz, jamais, de lembrar como era
o rosto dele. E deixei uma lágrima escapar.
- Não me
lembro do rosto.
- Eu sei
bem como é isto. Não me lembro mais de meu pai também.
Conversamos.
Nos encontramos. Nos convencemos de que o mundo era ruim e belo e que nossos
lábios solicitavam um ao outro. Que a arte era meu caminho. Que o sucesso era
algo inerente à nós. Artes gráficas, quadros, designer, um mundo de
criatividade e vida surgia em nossas mãos e a mais bela criação: Sophia.
Tentei
secretamente desenhar o rosto de meu companheiro e toda vez não era o mesmo.
Eram outros que nunca conheci.Minha mente montava quebra cabeças ilusórios para
se divertir de mim. Eu finalmente era uma família. Layla e Sophia, amores de
minha vida. As amei mais do que tudo aquilo que poderia conquistar. Então...
Ouço o
trem se aproximar. Ande logo vida! Passe diante mim rapidamente antes que eu
perca o trem.
Quando
chegamos a um nível aceitável de conforto familiar nos envolvemos com projetos
sociais. Ajudar era o que nossos corações desejavam e de forma determinada
comparecíamos em orfanatos, hospitais, asilos... Então surgiu aquele garoto.
Creio que o primeiro amor de Sophia. Ambos eram maravilhosamente belos juntos.
Irmãos ou namorados, pouco importa, eram lindos.
Rhomeu.
O garoto
fazia parte da ala mais pesada para se trabalhar no hospital, ao menos para
mim: câncer infantil. Era inteligente. A primeira vez que o vimos ele montava
um quebra cabeça enquanto cantarolava Lacrimosa de Mozart. Éramos três. Agora
éramos quatro. Não podíamos tirar Rhomeu daquele lugar devido ao tratamento.
Então o visitávamos constantemente. Assim foi durante três anos de intensa
paixão pela vida.
Um dia
como outro qualquer eu acordei. Era dia de me vestir de palhaço e ir animar as
crianças do hospital. Então o fiz alegremente de ala em ala. A ultima ala era a
de Rhomeu. Havia levado o violão e cantava, desafinadamente, mas cantava. Quem
cantava bem era Rhomeu, garotinho talentoso aquele pequeno.
Sophia tinha
feito aniversário uma semana atrás e na próxima seria o de Rhomeu.
Caminhei
alegre e antes de chegar na ala... Vejo Sophia saindo com o olhar baixo,
chorando, se encostando na parede e escorregando. Mãos escondendo a face e a
boca retorcida de sofrimento. Layla sentada do lado da cama de Rhomeu, vazia.
Médicos, enfermeiros e qualquer outro profissional que estivesse lá me olhavam.
Um palhaço com violão antes da porta. Tentei lembrar de meu companheiro e nada. Tentei lembrar o rosto de Rhomeu e ele não estava lá em minha memória também. Rhomeu morreu
fisicamente e em memória?
Fugi na
esperança de ver Rhomeu correndo atrás de mim pelos corredores a me alcançar e
dizer: Se quiser fuja, mas saiba que estarei aqui até você entender que se
acovardar não é a solução!
Um
palhaço pintado de Joseph sentado na calçada a chorar. Rhomeu morrera. Aquele
pequeno cantor. Os olhos se enchem d’água e o mundo se turva. Ouço um som
pesado nascer do encontro de um corpo com o chão e um grito materno.
- NÃO!!!
Meu coração
é fisgado pelo medo.
Então o
meu eu criador morre também. Álcool, Layla e Joseph. Companheiros inseparáveis.
Ah! Sim. Aqui estamos os três juntos diante o trilho de trem. Estamos esperando
um trem diante do trilho. O som dele se aproxima e me faz ansioso, mas tenho de
ter calma, pois nos lançaremos no momento certo e é o que fazemos.
Morremos
juntos.
Um
segundo depois estou a observar um jardim. Com o interesse de um gigante sobre
um mundo maior que ele: a beleza da simplicidade. Um caderno em mãos e uma
estranha curiosidade e desejo de reproduzir aquilo. Sempre fui um bom
observador de pessoas, gestos, objetos. E ao pegar o caderno e o lápis pensei:
Que diabos estou fazendo?